O pai decidiu que mudaria sua vida daquele dia em diante. Estava muito distante da filha e sentiu que precisava de uma aproximação. Precisava mesmo ensinar algumas coisas a ela para que num futuro distante, onde talvez ele já nem mais estivesse presente, pudesse ter boas recordações e quem sabe contar a seus filhos.
Foi então que resolveu levar Letícia para um passeio no sítio de seu pai. Nasceu e cresceu ali. Conhecia aquela imensidão de terras. Correu aqueles pastos verdinhos. Brincou de cowboy, de toureiro, de cavaleiro da noite.
Letícia também conhecia bem aquelas terras. Muitas vezes esteve ali acompanhada de sua mãe. O pai nestes tempos estava ocupado demais para desfrutar dos bons momentos que todo aquele espaço proporcionava.
Letícia também pisou no pasto verdinho e sentiu nos pés descalços o frescor da terra molhada. Gostava do cheiro bom daquelas pastagens. Conhecia bem o calor do chão do curral nas madrugadas em que acompanhava o avô para tirar leite das vacas. Deslumbrava-se ao ver os bezerrinhos mamando em suas mamães. O avô então dizia que era assim que ela mamava em sua mãe quando ainda pequenina.
E então, pai e filha juntos caminhavam por aquelas terras e apreciavam a paisagem quando em determinado momento Letícia o convida para irem ver o Alambique.
Alambique? Aqui no sítio? Letícia, não há nenhum alambique por aqui. Tem sim papai. Sempre vou visitá-lo com a mamãe. Só pode ser invenção de sua mãe. Vou te ensinar o que é alambique.
Letícia, sem nada entender e sem parar de caminhar em direção ao Alambique escutou calmamente a lição que o pai, detalhadamente, ensinava.
Alambique minha filha é um equipamento que se usa para a fabricação de cachaça. Cachaça é uma bebida alcoólica que é extraída da cana-de-açúcar. O líquido é colocado neste aparelho que é aquecido por uma caldeira. Este aquecimento transforma o líquido em vapor que logo é conduzido para uma solução que o refrigera e causa condensamento e daí surge uma bebida chamada pinga, cachaça, mé, água-ardente e muitos outros nomes que cada região lhe dá.
Diz a lenda que a água-ardente foi descoberta pelos escravos. Trabalhavam no engenho de cana-de-açúcar e como você já deve ter estudado, não usavam camisas. Apenas calças feitas de saco. Eles recebiam castigo de seus senhores que os levavam ao tronco para receber chibatadas, ou seja, eram chicoteados até a exaustão e os ferimentos ficavam em carne viva por muitos dias em suas costas.
Um dia os escravos estavam trabalhando na moagem da cana que é o processo que se extrai o caldo de cana, que você certamente conhece quando vai com mamãe à feira, e este caldo era levado a fogo brando até alcançar o ponto de mel que após seria submetido à agitação acelerando a cristalização do açúcar.
Neste dia o calor estava intenso e dentro do engenho maior ainda por conta dos grandes tachos que estavam no cozimento. O vapor subia e no teto transformava-se em pequenas gotas que caiam como chuva nas costas feridas dos escravos. Ao caírem nos ferimentos eles gritavam de dor porque ardia muito. O capataz invadiu a senzala quando ouviu o rebuliço dos negros e ao perguntar o que estava acontecendo responderam apontando para o teto: “pinga água ardente pinga”. E daí os primeiros nomes da bebida.
Enquanto o pai narrava seus conhecimentos Letícia o conduzia por caminhos muito conhecidos por ela. Olhava-o de quando em quando, mas naquele momento não estava interessada em açúcar que segundo sua mãe só servia para engordar e tão pouco na tal bebida que já sabia, deixava as pessoas alegrinhas, atrapalhadas, fora da realidade também segundo palavras de sua mãe. Virou-se para o pai e disse: Papai você pirou de vez! Alambique não é tudo isso que você falou. Olhe lá. Estamos chegando. Veja uma coisa. E assim dizendo gritou:
- Alaaaaaaaaaaaammmmbiqueeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
E por detrás de uma pequena cerca arruinada pelo tempo surge um pequeno cão que animadamente abanava o rabinho, latia e chorava lambendo a amiguinha que se ajoelhou para abraçá-lo.