terça-feira, 30 de março de 2010
Doces Nuvens
terça-feira, 16 de março de 2010
INDIFERENÇA
Era madrugada quando desligou os botões que apagam luzes e trazem silêncio. Sempre foi a última a recolher-se. Sobravam-lhe algumas tarefas que automaticamente fazia, mas naquela noite as coisas foram diferentes. Ao levantar-se da cadeira sentiu leve tontura. Estranhou, mas não se incomodou. Ganhou as escadas e a quente água que saia do chuveiro. Perfumou-se. Hábito antigo. Em tempos de aperto ficou sem seus perfumes e se aborreceu. Delicadamente ajeitou-se na cama. Não queria incomodar. A última luz apagou-se. A de seu celular. Outra mania que adquiriu recentemente. Gosta de ler as mensagens do dia, do dia anterior, de outros dias. Não apaga nenhuma. Faz disso sua oração. Novamente a tontura. Sensação ruim. O suor brotando pelos poros. Sentiu calor. Ajeitou-se novamente e tentou dormir. Tontura novamente. Desta vez pra valer. Não conseguiu chamar. O corpo deslizando... indo... Confusão mental. Sentiu medo, calafrios e arrepios. Como era possível não ter forças para lutar? Estaria morrendo? Em meio ao desespero, um grito. O marido, sonolento e indiferente a tudo pergunta: o que foi? Não vê que estou morrendo? Morrendo? Não vejo nada. Você não está morrendo. Claro que estou. Você é que nunca percebe nada. Alguma coisa está me puxando, me levando e você fica aí me olhando? Você estava sonhando. Eeeeu? Sonhando? É tudo que tem a dizer? Nem consegui dormir e já vem você dizendo, como sempre, que eu estava sonhando? Então durma. Dormir? Acha que posso dormir? Não posso. Como não pode? Se eu dormir, morro. Não to entendendo nada. E daí? Você nunca entende. Fique acordado. Não me deixe dormir. Não me deixe morrer. Você está molhada de suor! Não disse! Alguma coisa está errada. Você está gelada. Porque está chorando? Não sei. Como não sabe? Não sei. Deixou por isso mesmo. Sequer tentou descobrir o motivo das lágrimas. Nem mesmo no dia seguinte ele perguntou. Era como se nada tivesse acontecido. Envolveu-a em seus braços. Puxou o lençol e a cobriu. E dormiu. Ela ficou quieta, aquecida, esquecida. Teve medo de dormir. Lembrou-se de uma mensagem que havia recebido que trazia uma conversa de Emília e o Sr Visconde: "– A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais [...] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?" Não. Definitivamente não era o momento para virar hipótese. E não virou.
Texto em negrito: Sítio do Pica-Pau-Amarelo – Monteiro Lobato