Marli é uma costureira daquelas que ninguém põe defeito. Trabalha muito também. Costura sonhos enquanto acelera o pedal da máquina. Gosta do que faz e quando conclui uma peça fica por longos momentos admirando e pensando em quem irá usá-la.
Marli tem uma cachorrinha que se chama Maria. Esta cachorrinha a acompanha incansavelmente. A sala de costura fica repleta de tecidos e Maria não se intimida em aninhar-se em cima de um deles e cochilar por horas. Claro que Marli briga, Maria encolhe o rabinho, sai de mansinho e quando percebe que Marli distrai-se, pimba! Pula pra cima de outro tecido.
Dia destes Marli contratou uma costureira para ajudá-la. Por ironia do destino ela também tem o nome de Maria. A moça não gostou, mas trabalho é trabalho. A confusão é geral. A moça se confunde, pois nunca sabe se estão falando com ela ou com a cachorra, já que falar com animais naquela casa é perfeitamente normal.
Mas como paciência tem limite o da moça estourou quando Marli sairia para ir ao banco resolver alguns pagamentos. Já no portão Marli lembrou-se da Maria cachorra e gritou: Filho, preste atenção! Não deixe Maria dormir no serviço. Quando Marli voltou, Maria dormia e a outra Maria não voltou nunca mais.
Não podia ver um. Era um momento mágico. Momento dela e não dividia com ninguém. Quando percebia a chegada de um deles seus pequenos olhos brilhavam de alegria. Silenciosamente aproximava-se e prendia-o em suas mãos. Não conseguia tocar com delicadeza. Apertava. Delirava. Gritava. Sorria. E por fim ele não agüentava e morto caía. E mais uma vez sua mãe explicava-se com a vizinha que mais um pintinho de sua galinha morria.
Não pensem que sempre estou entrando em botecos é que na verdade nunca sai de dentro de um deles. hic... hic... E as coisas vão acontecendo e é muito bom quando podemos nos lembrar de certos casos. Um bêbado entrou. Sim, ele já estava bêbado quando chegou. Encostou o cotovelo no balcão, olhou para a garçonete, olhou para as várias garrafas espalhadas na prateleira e apontou para uma delas. Na verdade ele achava que estava apontando para alguma coisa, mas seu dedo indicador apontava para várias garrafas, pois não havia controle naquele gesto. A garçonete então pegava uma garrafa e dizia: Esta? Ele repondia: Não, aquela lá; e apontava. Novamente o dedo oscilava e apontava para todas as garrafas. Pacientemente a garçonete pegava a garrafa que ela achava ter sido a eleita e mostrava para o homem. Ele fazia negativamente com a cabeça e novamente apontava. A garçote então disse: - Bem, vamos resolver este impasse, porque do contrário você acaba com caimbra no dedo e eu vesga e com torcicolo. Vou lhe servir esta. Pegou a garrafa de cachaça e serviu o freguês. Ele não disse nada e bebeu. Depois bebeu novamente. E mais uma vez bebeu. E após mais algumas goladas, como num estalar de dedos, assim como os mágicos estalam os dedos quando estão apresentando suas mágicas, o homem endureceu. Isso mesmo. Ficou como que estátua. Não piscava os olhos. Não mexia a boca. Parecia até que nem respirava. A garçote olhou para ele assustada. O homem que estava ao seu lado também se assustou. Todos do bar olharam com espanto. O homem continuou duro. Chamavam. Falavam. Sacudiam. Passavam a mão em frente aos seus olhos; e nada! Quando o pânico ficou geral o homem ameaçou um sorriso no canto da boca, deu o último gole que ainda restava no copo que neste tempo todo segurava nas mãos, depositou-o no balcão e saiu. Fregueses e funcionários o acompanharam com olhar de surpresa. Não entenderam nada. Minutos depois alguém grita de dentro do balcão: - A conta! A conta! Ele não pagou a conta! Tarde demais. O homem que havia virado estátua, ganhou velocidade e sumiu no mapa.
Em bares, botecos, botequins e afins de tudo acontece. Os assuntos são diversos e alteram-se a cada gole, a cada copo que se esvazia e a cada um que chega aumentando a reunião. Falam de tudo. Trabalho, família, vizinhos, amigos, futebol, política, culinária, mulheres. Enfeitam as horas. Esquecem-se na madrugada. Nesta noite não havia clientes pendurados no balcão. O dono não precisou enxotar nenhum bebum desavisado. Bar vazio, pronto para ser fechado, um casal entra e o sujeito pede uma cerveja. Aparentavam ser daqueles casais que não param em bar nenhum, mas bebem em todos. Percebia-se já alterados pelo álcool. O homenzinho iniciou conversa com o dono do bar. O dono, pouco receptivo àquela hora da madrugada, respondia laconicamente, mas o sotaque não passou despercebido pelo homenzinho que mostrava vontade de falar. Não demorou muito veio a pergunta a qual o dono já não suportava mais responder: Você é estrangeiro? Olhou com irritação para o cliente, mas respondeu que sim, era estrangeiro. O homenzinho se encantou e decidiu falar de igual para igual, querendo talvez, mostrar seus conhecimentos internacionais. Começou aumentando o tom de voz. É impressionante a confusão que as pessoas fazem em casos assim. Estrangeiros não são obrigatoriamente surdos. Também passou a gesticular as mãos fazendo mímicas. Estrangeiros não são obrigatoriamente mudos. E dizia: - Mim caminonéro. Tieno caminhón. Batia no peito e juntava as duas mãos como que num volante de automóvel. - Mim entrega madéra São Pablo. Batia no balcão apontando a madeira. - Mim gosta trabaiá madrugada. Olhava para a mulher e sorria com orgulho de si mesmo. O dono do bar apenas escutava e de quando em quando olhava para o relógio que lentamente movimentava seus ponteiros. Novamente ele dizia: - Mim gosta conversá com gente de otras tierras e é por isso que mim agora puede falá conocê. Olhava para a mulher e dizia: Bieja, mire, ela no puede entrá no assunto porque no apriende nadia. O dono do bar percebendo que a cerveja estava acabando e temeroso de haver um novo pedido e ter que suportar mais uma conversa carregada de gritos e cheia de mímicas, disse: Se estão viajando é melhor não beber muito e também já estava pensando e baixar as portas quando vocês chegaram. - Fique tanquillo gringo. Mim termina esta e vai bora. Osté conece São Pablo? És una linda cidá. Siempre biajo para alá. Mim entrega mucha madéra por alá. Pronto! Lá vinha toda a história de novo. O dono do bar pensou: bêbados... bêbados... e ficou somente escutando aquele homenzinho que gesticulava, falava alto, orgulhava-se de si mesmo e criava um novo idioma.
Eu era muito pequena quando ouvia as histórias da menininha que entrava pelo espelho e encontrava do outro lado um mundo mágico. Era para mim um encantamento. Fechava meus olhos e voava com Alice pelos jardins, castelos e também por lugares sombrios. O mundo do outro lado do espelho tinha graça, cor, bom humor, música e medo. Não era um medo qualquer. Era um medo que atiçava a coragem. O medo adorava ser enfrentado pela coragem. Então, quando me sentia muito só ou mesmo entristecida, porque crianças também sentem tristeza, corria até o velho guarda-roupa em busca de Alice. Havia neste guarda-roupa de cor branca e gasta pelo tempo, duas portas laterais e no meio um grande espelho que refletia o pequeno e único quarto da casa. Aproximava-me de mansinho e rapidamente abria uma das portas na tentativa inútil de também entrar naquele mundinho mágico e colorido. Pensava que, um dia estando nele, nunca mais voltaria. O tempo passou. O espelho descascou-se perdendo a vivacidade do reflexo. O pequeno quarto sumiu. A menina cresceu, mas ainda procura em outros espelhos o espelho que um dia guardou com ele sua alegriae suas esperanças.